
Por Juan Donoso Cortés
Essa nova teologia chama-se catolicismo. O catolicismo é um sistema de civilização completo; tão completo, que na sua imensidão abarca tudo: a ciência de Deus, a ciência do anjo, a ciência do universo, a ciência do homem. O incrédulo cai em êxtase ao ver sua inconcebível extravagância, e o crente, ao ver tão estranha grandeza. Se acaso há alguém que, ao contemplá-la, passa indiferente e sorri, os homens, mais assombrados ainda dessa estúpida indiferença que daquela colossal grandeza e daquela inconcebível extravagância, levantam a voz e exclamam: «Deixai passar o insensato».
A humanidade inteira cursou, por espaço de dezenove séculos, nas escolas de seus teólogos e doutores; e, após tanto estudar e tanto aprender, ainda hoje não atingiu, com sua sonda, o abismo de sua ciência. Ali aprende-se como e quando hão de findar, e quando e como tiveram princípio, as coisas e os tempos; ali se descobrem segredos maravilhosos, sempre ocultos às especulações dos filósofos gentios e ao entendimento de seus sábios; ali se revelam as causas finais de todas as coisas, o movimento ordenado dos negócios humanos, a natureza dos corpos e as essências dos espíritos, os caminhos por onde andam os homens, o termo a que se dirigem, o ponto de onde vêm, o mistério de sua peregrinação e a rota de sua viagem, o enigma de suas lágrimas, o segredo da vida e o arcano da morte. As crianças amamentadas em seus fecundíssimos seios sabem hoje mais que Aristóteles e Platão, luminares de Atenas. E, contudo, os doutores que tais coisas ensinam e a tais alturas ascendem, são humildes. Só ao mundo católico foi dado oferecer, sobre a terra, um espetáculo antes reservado aos anjos do céu: o espetáculo da ciência prostrada pela humildade ante o acatamento divino.
Chama-se esta teologia católica porque é universal; e é-o em todos os sentidos e sob todos os aspectos: é universal porque abarca todas as verdades; é-o porque abarca tudo quanto todas as verdades contêm; é-o porque, por sua natureza, está destinada a dilatar-se por todos os espaços e a prolongar-se por todos os tempos; é-o em seu Deus e é-o em seus dogmas.
Deus era unidade na Índia, dualismo na Pérsia, variedade na Grécia, multidão em Roma. O Deus vivo é uno em substância, como o índico; múltiplo em pessoas, à semelhança do persa; à maneira dos deuses gregos, é variegado em atributos; e, pela multidão de espíritos (deuses) que o servem, é multidão à maneira dos deuses romanos. É causa universal, substância infinita e impalpável, repouso eterno e autor de todo movimento; é inteligência suprema, vontade soberana, continente e não contido. Ele é quem tirou tudo do nada, quem mantém cada coisa em seu ser; quem governa as coisas angélicas, humanas e infernais. É misericordiosíssimo, justíssimo, amorosíssimo, fortíssimo, potentíssimo, simplicíssimo, secretíssimo, belíssimimo, sapientíssimo. O Oriente conhece sua voz, o Ocidente lhe obedece, o Meio-Dia o reverencia, o Setentrião o acata. Sua palavra incha a criação, os astros velam sua face, os serafins refletem sua luz em suas asas inflamadas, os céus lhe servem de trono, e a redondeza da terra está suspensa em sua mão. Quando se cumpriram os tempos, o Deus católico mostrou sua face; bastou isso para que todos os ídolos fabricados pelos homens ruíssem por terra. Não podia ser de outro modo, pois as teologias humanas não eram senão fragmentos mutilados da teologia católica, e os deuses das nações não eram senão a deificação de alguma das propriedades essenciais do verdadeiro Deus, do Deus bíblico.
O catolicismo apoderou-se do homem em seu corpo, em seus sentidos e em sua alma. Os teólogos dogmáticos ensinaram-lhe o que devia crer; os morais, o que devia fazer; e os místicos, remontando-se acima de todos, ensinaram-lhe a elevar-se ao alto com asas de oração, essa escada de Jacó feita de pedras cintilantes, por onde Deus desce à terra e o homem sobe ao céu, até confundirem-se céu e terra, Deus e homem, abrasados todos no incêndio de um amor infinito.
Pelo catolicismo, entrou a ordem no homem, e pelo homem nas sociedades humanas. O mundo moral reencontrou, no dia da Redenção, as leis que perdera no dia da prevaricação e do pecado. O dogma católico foi o critério das ciências, a moral católica o critério das ações, e a caridade o critério dos afetos. A consciência humana, saída do caos, viu com clareza nas trevas interiores, assim como nas exteriores, e reconheceu a bem-aventurança da paz perdida, à luz desses três critérios divinos.
A ordem passou do mundo religioso ao mundo moral, e deste ao mundo político. O Deus católico, criador e sustentador de todas as coisas, sujeitou-as ao governo de sua providência, e governou-as por seus vigários. Diz São Paulo em sua Epístola aos Romanos (cap. 13): Non est potestas nisi a Deo. E Salomão, nos Provérbios (cap. 8, v. 15): Per me reges regnant, et conditores legum justa decernunt. A autoridade de seus vigários foi santa justamente por ser alheia, isto é, divina. A ideia de autoridade é de origem católica. Os antigos governantes dos povos fundaram sua soberania sobre fundamentos humanos; governavam para si, e governavam pela força. Os governantes católicos, desprezando-se a si mesmos, não foram outra coisa senão ministros de Deus e servidores dos povos. Quando o homem passou a ser filho de Deus, logo cessou de ser escravo do homem. Nada há, ao mesmo tempo, mais respeitável, mais solene e mais augusto do que as palavras que a Igreja proferia aos ouvidos dos príncipes cristãos no momento de sua consagração: «Tomai este bastão como emblema de vosso sagrado poder, para que possais fortificar o fraco, sustentar o vacilante, corrigir o vicioso e conduzir o bom pelo caminho da salvação. Tomai o cetro como regra da equidade divina, que governa o justo e pune o mau; aprendei, por ele, a amar a justiça e a aborrecer a iniquidade.» Estas palavras guardavam perfeita consonância com a ideia de autoridade legítima, revelada ao mundo por Nosso Senhor Jesus Cristo: Scitis quia hi, qui videntur principari gentibus, dominantur eis: et principes eorum potestatem habent ipsorum. Non ita est autem in vobis, sed quicumque voluerit fieri major, erit vester minister; et quicumque voluerit in vobis primus esse, erit omnium servus. Nam et Filius hominis non venit ut ministraretur ei, sed ut ministraret, et daret animam suam redemptionem pro multis (Mc 10, 42-45).
Todos lucraram com essa ditosa revolução: os povos e seus governantes; os segundos, porque, não tendo antes dominado senão sobre os corpos pelo direito da força, passaram a governar corpos e espíritos juntamente, sustentados pela força do direito; os primeiros, porque passaram da obediência ao homem à obediência a Deus, e da obediência forçada à obediência consentida. Contudo, se todos ganharam, não ganharam todos igualmente, pois os príncipes, no próprio ato de governar em nome de Deus, representavam a Humanidade do ponto de vista de sua impotência para constituir autoridade legítima por si mesma e em nome próprio; ao passo que os povos, no próprio ato de obedecer em seu príncipe somente a Deus, representavam a mais alta e gloriosa das prerrogativas humanas: a de não se sujeitarem senão ao jugo da autoridade divina. Isso explica, por um lado, a singular modéstia que resplandece na História nos príncipes ditosos, a quem os homens chamam grandes, e a Igreja chama santos; e, por outro, a nobreza altiva que se vê estampada no semblante de todos os povos católicos. Uma voz de paz, de consolo e de misericórdia se erguera no mundo, e ressoara profundamente na consciência humana; e essa voz ensinara aos homens que os pequenos e necessitados nascem para ser servidos, porque são necessitados e pequenos; que os grandes e ricos nascem para servir, porque são ricos e grandes. O catolicismo, divinizando a autoridade, santificou a obediência; e santificando uma e divinizando a outra, condenou o orgulho em suas mais tremendas manifestações: no espírito de dominação e no espírito de rebeldia. Duas coisas são absolutamente impossíveis numa sociedade verdadeiramente católica: o despotismo e as revoluções. Rousseau, que por vezes teve súbitas e grandes iluminações, escreveu estas notáveis palavras: «Os governos modernos devem indubitavelmente ao cristianismo, por um lado, a consistência de sua autoridade; por outro, o espaçamento maior entre as revoluções. Nem aí se limitou sua influência, pois, atuando sobre eles mesmos, tornou-os mais humanos; para se convencer disso, basta compará-los com os governos antigos» (Émile, Livro IV). E Montesquieu disse: «Não cabe dúvida de que o cristianismo criou entre nós o direito político que reconhecemos na paz, e o das gentes que respeitamos na guerra, cujos benefícios o gênero humano jamais agradecerá suficientemente» (O Espírito das Leis, Livro XXIX, cap. 3).
O mesmo Deus, que é autor e governador da sociedade política, é também autor e governador da sociedade doméstica. No mais escondido, no mais alto, no mais sereno e luminoso dos céus, reside um Tabernáculo inacessível até mesmo aos coros angélicos: nesse Tabernáculo inacessível realiza-se perpetuamente o prodígio dos prodígios e o mistério dos mistérios. Ali está o Deus católico, uno e trino, uno em essência, trino nas Pessoas. O Pai gera eternamente o Filho, e do Pai e do Filho procede eternamente o Espírito Santo. E o Espírito Santo é Deus, e o Filho é Deus, e o Pai é Deus; e Deus não admite plural, porque há um só Deus, trino nas Pessoas e uno na essência. O Espírito Santo é Deus como o Pai, mas não é Pai; é Deus como o Filho, mas não é Filho. O Filho é Deus como o Espírito Santo, mas não é Espírito Santo; é Deus como o Pai, mas não é Pai; o Pai é Deus como o Filho, mas não é Filho; é Deus como o Espírito Santo, mas não é Espírito Santo. O Pai é onipotência, o Filho é sabedoria, o Espírito Santo é amor; e o Pai, o Filho e o Espírito Santo são amor infinito, potência suprema, sabedoria perfeita. Ali, a unidade, dilatando-se, gera eternamente a variedade; e a variedade, condensando-se, resolve-se eternamente em unidade. Deus é tese, é antítese e é síntese; é tese soberana, antítese perfeita, síntese infinita. Porque é uno, é Deus; porque é Deus, é perfeito; porque é perfeito, é fecundíssimo; porque é fecundíssimo, é variedade; porque é variedade, é família. Em sua essência estão, de maneira inenarrável e incompreensível, as leis da criação e os arquétipos de todas as coisas. Tudo foi feito à sua imagem; por isso a criação é una e variada. A palavra “universo” significa precisamente isso: unidade e variedade unidas em um só.
O homem foi criado por Deus à sua imagem, e não somente à sua imagem, mas também à sua semelhança; por isso o homem é uno na essência e trino nas pessoas. Eva procede de Adão, Abel é gerado por Adão e Eva, e Abel, Eva e Adão são uma mesma coisa: são o homem, são a natureza humana. Adão é o homem pai, Eva é o homem mulher, Abel é o homem filho. Eva é homem como Adão, mas não é pai; é homem como Abel, mas não é filho. Adão é homem como Abel, sem ser filho, e como Eva, sem ser mulher. Abel é homem como Eva, sem ser mulher, e como Adão, sem ser pai.
Todos esses nomes são nomes divinos, como divinas são as funções que eles significam. A ideia da paternidade, fundamento da família, não pôde jamais caber por si no entendimento humano. Entre o pai e o filho não existe nenhuma daquelas diferenças fundamentais que constituem base bastante larga para ali se assentar um direito. A prioridade é um fato e nada mais; a força é um fato e nada mais; a prioridade e a força não podem, por si sós, constituir o direito da paternidade, embora possam dar origem a outro fato: o da servidão. O nome próprio do pai, admitido esse fato, é o de senhor, como o nome do filho é o de escravo. E esta verdade, que a razão nos dita, está confirmada pela História: nos povos esquecidos das grandes tradições bíblicas, a paternidade nunca foi senão o nome próprio da tirania doméstica. Se tivesse existido um povo esquecido, por um lado, dessas grandes tradições, e, por outro, apartado do culto da força material, nesse povo os pais e os filhos teriam sido, e se teriam chamado, irmãos. A paternidade vem de Deus, e só de Deus pode vir, no nome e na essência. Se Deus tivesse permitido o completo esquecimento das tradições do paraíso, o gênero humano, com a instituição, teria perdido até mesmo o nome.
A família, divina em sua instituição, divina em sua essência, seguiu em toda parte as vicissitudes da civilização católica; e isso é tão certo que a pureza ou a corrupção da primeira é sempre sintoma infalível da pureza ou corrupção da segunda, assim como a história das vicissitudes e perturbações desta é a história das perturbações e vicissitudes por que passa aquela.
Nas idades católicas, a tendência da família é para o aperfeiçoamento: de natural, converte-se em espiritual, e do lar doméstico passa aos claustros. Enquanto os filhos se prostram reverentes no lar, aos pés do pai e da mãe, os habitantes dos claustros, filhos mais rendidos e reverentes ainda, banham com lágrimas os sacratíssimos pés de outro Pai melhor e o sacratíssimo manto de outra Mãe mais terna. Quando a civilização católica declina e entra em período de decadência, a família logo decai, vicia-se sua constituição, descompõem-se seus elementos e todos os seus vínculos se afrouxam. O pai e a mãe, entre os quais Deus não colocou outro medianeiro senão o amor, interpõem entre si o cerimonial severo; ao passo que uma familiaridade sacrílega suprime a distância que Deus pôs entre filhos e pais, lançando por terra o medianeiro da reverência. A família, então envilecida e profanada, dispersa-se e vai perder-se nos clubes e nos cassinos.
A história da família pode ser encerrada em poucos termos. A família divina, exemplar e modelo da humana, é eterna em todos os seus indivíduos. A família humana espiritual, que é a mais perfeita depois da divina, dura, em todos os seus membros, o tempo que dura o tempo; a família humana natural, entre pai e mãe, dura o que dura a vida, e entre pais e filhos, largos anos. A família humana anticatólica dura, entre pai e mãe, alguns anos; entre pai e filhos, alguns meses; a família artificial dos clubes dura um dia; a dos cassinos, um instante. A duração é, aqui como em muitas outras coisas, medida das perfeições. Entre a família divina e a humana dos claustros há a mesma proporção que entre a eternidade e o tempo; entre a espiritual dos claustros, a mais perfeita das humanas, e a sensual dos clubes, a mais imperfeita, há a mesma proporção que entre a brevidade de um minuto e a vastidão dos séculos.
Juan Donoso Cortés, Ensaio sobre Catolicismo, Liberalismo e socialismo, Livro I, Capítulo II
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