domingo, 29 de junho de 2025

Da sociedade sob o império da teologia católica


Por Juan Donoso Cortés

Essa nova teologia chama-se catolicismo. O catolicismo é um sistema de civilização completo; tão completo, que na sua imensidão abarca tudo: a ciência de Deus, a ciência do anjo, a ciência do universo, a ciência do homem. O incrédulo cai em êxtase ao ver sua inconcebível extravagância, e o crente, ao ver tão estranha grandeza. Se acaso há alguém que, ao contemplá-la, passa indiferente e sorri, os homens, mais assombrados ainda dessa estúpida indiferença que daquela colossal grandeza e daquela inconcebível extravagância, levantam a voz e exclamam: «Deixai passar o insensato».

A humanidade inteira cursou, por espaço de dezenove séculos, nas escolas de seus teólogos e doutores; e, após tanto estudar e tanto aprender, ainda hoje não atingiu, com sua sonda, o abismo de sua ciência. Ali aprende-se como e quando hão de findar, e quando e como tiveram princípio, as coisas e os tempos; ali se descobrem segredos maravilhosos, sempre ocultos às especulações dos filósofos gentios e ao entendimento de seus sábios; ali se revelam as causas finais de todas as coisas, o movimento ordenado dos negócios humanos, a natureza dos corpos e as essências dos espíritos, os caminhos por onde andam os homens, o termo a que se dirigem, o ponto de onde vêm, o mistério de sua peregrinação e a rota de sua viagem, o enigma de suas lágrimas, o segredo da vida e o arcano da morte. As crianças amamentadas em seus fecundíssimos seios sabem hoje mais que Aristóteles e Platão, luminares de Atenas. E, contudo, os doutores que tais coisas ensinam e a tais alturas ascendem, são humildes. Só ao mundo católico foi dado oferecer, sobre a terra, um espetáculo antes reservado aos anjos do céu: o espetáculo da ciência prostrada pela humildade ante o acatamento divino.

Chama-se esta teologia católica porque é universal; e é-o em todos os sentidos e sob todos os aspectos: é universal porque abarca todas as verdades; é-o porque abarca tudo quanto todas as verdades contêm; é-o porque, por sua natureza, está destinada a dilatar-se por todos os espaços e a prolongar-se por todos os tempos; é-o em seu Deus e é-o em seus dogmas.

Deus era unidade na Índia, dualismo na Pérsia, variedade na Grécia, multidão em Roma. O Deus vivo é uno em substância, como o índico; múltiplo em pessoas, à semelhança do persa; à maneira dos deuses gregos, é variegado em atributos; e, pela multidão de espíritos (deuses) que o servem, é multidão à maneira dos deuses romanos. É causa universal, substância infinita e impalpável, repouso eterno e autor de todo movimento; é inteligência suprema, vontade soberana, continente e não contido. Ele é quem tirou tudo do nada, quem mantém cada coisa em seu ser; quem governa as coisas angélicas, humanas e infernais. É misericordiosíssimo, justíssimo, amorosíssimo, fortíssimo, potentíssimo, simplicíssimo, secretíssimo, belíssimimo, sapientíssimo. O Oriente conhece sua voz, o Ocidente lhe obedece, o Meio-Dia o reverencia, o Setentrião o acata. Sua palavra incha a criação, os astros velam sua face, os serafins refletem sua luz em suas asas inflamadas, os céus lhe servem de trono, e a redondeza da terra está suspensa em sua mão. Quando se cumpriram os tempos, o Deus católico mostrou sua face; bastou isso para que todos os ídolos fabricados pelos homens ruíssem por terra. Não podia ser de outro modo, pois as teologias humanas não eram senão fragmentos mutilados da teologia católica, e os deuses das nações não eram senão a deificação de alguma das propriedades essenciais do verdadeiro Deus, do Deus bíblico.

O catolicismo apoderou-se do homem em seu corpo, em seus sentidos e em sua alma. Os teólogos dogmáticos ensinaram-lhe o que devia crer; os morais, o que devia fazer; e os místicos, remontando-se acima de todos, ensinaram-lhe a elevar-se ao alto com asas de oração, essa escada de Jacó feita de pedras cintilantes, por onde Deus desce à terra e o homem sobe ao céu, até confundirem-se céu e terra, Deus e homem, abrasados todos no incêndio de um amor infinito.

Pelo catolicismo, entrou a ordem no homem, e pelo homem nas sociedades humanas. O mundo moral reencontrou, no dia da Redenção, as leis que perdera no dia da prevaricação e do pecado. O dogma católico foi o critério das ciências, a moral católica o critério das ações, e a caridade o critério dos afetos. A consciência humana, saída do caos, viu com clareza nas trevas interiores, assim como nas exteriores, e reconheceu a bem-aventurança da paz perdida, à luz desses três critérios divinos.

A ordem passou do mundo religioso ao mundo moral, e deste ao mundo político. O Deus católico, criador e sustentador de todas as coisas, sujeitou-as ao governo de sua providência, e governou-as por seus vigários. Diz São Paulo em sua Epístola aos Romanos (cap. 13): Non est potestas nisi a Deo. E Salomão, nos Provérbios (cap. 8, v. 15): Per me reges regnant, et conditores legum justa decernunt. A autoridade de seus vigários foi santa justamente por ser alheia, isto é, divina. A ideia de autoridade é de origem católica. Os antigos governantes dos povos fundaram sua soberania sobre fundamentos humanos; governavam para si, e governavam pela força. Os governantes católicos, desprezando-se a si mesmos, não foram outra coisa senão ministros de Deus e servidores dos povos. Quando o homem passou a ser filho de Deus, logo cessou de ser escravo do homem. Nada há, ao mesmo tempo, mais respeitável, mais solene e mais augusto do que as palavras que a Igreja proferia aos ouvidos dos príncipes cristãos no momento de sua consagração: «Tomai este bastão como emblema de vosso sagrado poder, para que possais fortificar o fraco, sustentar o vacilante, corrigir o vicioso e conduzir o bom pelo caminho da salvação. Tomai o cetro como regra da equidade divina, que governa o justo e pune o mau; aprendei, por ele, a amar a justiça e a aborrecer a iniquidade.» Estas palavras guardavam perfeita consonância com a ideia de autoridade legítima, revelada ao mundo por Nosso Senhor Jesus Cristo: Scitis quia hi, qui videntur principari gentibus, dominantur eis: et principes eorum potestatem habent ipsorum. Non ita est autem in vobis, sed quicumque voluerit fieri major, erit vester minister; et quicumque voluerit in vobis primus esse, erit omnium servus. Nam et Filius hominis non venit ut ministraretur ei, sed ut ministraret, et daret animam suam redemptionem pro multis (Mc 10, 42-45).

Todos lucraram com essa ditosa revolução: os povos e seus governantes; os segundos, porque, não tendo antes dominado senão sobre os corpos pelo direito da força, passaram a governar corpos e espíritos juntamente, sustentados pela força do direito; os primeiros, porque passaram da obediência ao homem à obediência a Deus, e da obediência forçada à obediência consentida. Contudo, se todos ganharam, não ganharam todos igualmente, pois os príncipes, no próprio ato de governar em nome de Deus, representavam a Humanidade do ponto de vista de sua impotência para constituir autoridade legítima por si mesma e em nome próprio; ao passo que os povos, no próprio ato de obedecer em seu príncipe somente a Deus, representavam a mais alta e gloriosa das prerrogativas humanas: a de não se sujeitarem senão ao jugo da autoridade divina. Isso explica, por um lado, a singular modéstia que resplandece na História nos príncipes ditosos, a quem os homens chamam grandes, e a Igreja chama santos; e, por outro, a nobreza altiva que se vê estampada no semblante de todos os povos católicos. Uma voz de paz, de consolo e de misericórdia se erguera no mundo, e ressoara profundamente na consciência humana; e essa voz ensinara aos homens que os pequenos e necessitados nascem para ser servidos, porque são necessitados e pequenos; que os grandes e ricos nascem para servir, porque são ricos e grandes. O catolicismo, divinizando a autoridade, santificou a obediência; e santificando uma e divinizando a outra, condenou o orgulho em suas mais tremendas manifestações: no espírito de dominação e no espírito de rebeldia. Duas coisas são absolutamente impossíveis numa sociedade verdadeiramente católica: o despotismo e as revoluções. Rousseau, que por vezes teve súbitas e grandes iluminações, escreveu estas notáveis palavras: «Os governos modernos devem indubitavelmente ao cristianismo, por um lado, a consistência de sua autoridade; por outro, o espaçamento maior entre as revoluções. Nem aí se limitou sua influência, pois, atuando sobre eles mesmos, tornou-os mais humanos; para se convencer disso, basta compará-los com os governos antigos» (Émile, Livro IV). E Montesquieu disse: «Não cabe dúvida de que o cristianismo criou entre nós o direito político que reconhecemos na paz, e o das gentes que respeitamos na guerra, cujos benefícios o gênero humano jamais agradecerá suficientemente» (O Espírito das Leis, Livro XXIX, cap. 3).

O mesmo Deus, que é autor e governador da sociedade política, é também autor e governador da sociedade doméstica. No mais escondido, no mais alto, no mais sereno e luminoso dos céus, reside um Tabernáculo inacessível até mesmo aos coros angélicos: nesse Tabernáculo inacessível realiza-se perpetuamente o prodígio dos prodígios e o mistério dos mistérios. Ali está o Deus católico, uno e trino, uno em essência, trino nas Pessoas. O Pai gera eternamente o Filho, e do Pai e do Filho procede eternamente o Espírito Santo. E o Espírito Santo é Deus, e o Filho é Deus, e o Pai é Deus; e Deus não admite plural, porque há um só Deus, trino nas Pessoas e uno na essência. O Espírito Santo é Deus como o Pai, mas não é Pai; é Deus como o Filho, mas não é Filho. O Filho é Deus como o Espírito Santo, mas não é Espírito Santo; é Deus como o Pai, mas não é Pai; o Pai é Deus como o Filho, mas não é Filho; é Deus como o Espírito Santo, mas não é Espírito Santo. O Pai é onipotência, o Filho é sabedoria, o Espírito Santo é amor; e o Pai, o Filho e o Espírito Santo são amor infinito, potência suprema, sabedoria perfeita. Ali, a unidade, dilatando-se, gera eternamente a variedade; e a variedade, condensando-se, resolve-se eternamente em unidade. Deus é tese, é antítese e é síntese; é tese soberana, antítese perfeita, síntese infinita. Porque é uno, é Deus; porque é Deus, é perfeito; porque é perfeito, é fecundíssimo; porque é fecundíssimo, é variedade; porque é variedade, é família. Em sua essência estão, de maneira inenarrável e incompreensível, as leis da criação e os arquétipos de todas as coisas. Tudo foi feito à sua imagem; por isso a criação é una e variada. A palavra “universo” significa precisamente isso: unidade e variedade unidas em um só.

O homem foi criado por Deus à sua imagem, e não somente à sua imagem, mas também à sua semelhança; por isso o homem é uno na essência e trino nas pessoas. Eva procede de Adão, Abel é gerado por Adão e Eva, e Abel, Eva e Adão são uma mesma coisa: são o homem, são a natureza humana. Adão é o homem pai, Eva é o homem mulher, Abel é o homem filho. Eva é homem como Adão, mas não é pai; é homem como Abel, mas não é filho. Adão é homem como Abel, sem ser filho, e como Eva, sem ser mulher. Abel é homem como Eva, sem ser mulher, e como Adão, sem ser pai.

Todos esses nomes são nomes divinos, como divinas são as funções que eles significam. A ideia da paternidade, fundamento da família, não pôde jamais caber por si no entendimento humano. Entre o pai e o filho não existe nenhuma daquelas diferenças fundamentais que constituem base bastante larga para ali se assentar um direito. A prioridade é um fato e nada mais; a força é um fato e nada mais; a prioridade e a força não podem, por si sós, constituir o direito da paternidade, embora possam dar origem a outro fato: o da servidão. O nome próprio do pai, admitido esse fato, é o de senhor, como o nome do filho é o de escravo. E esta verdade, que a razão nos dita, está confirmada pela História: nos povos esquecidos das grandes tradições bíblicas, a paternidade nunca foi senão o nome próprio da tirania doméstica. Se tivesse existido um povo esquecido, por um lado, dessas grandes tradições, e, por outro, apartado do culto da força material, nesse povo os pais e os filhos teriam sido, e se teriam chamado, irmãos. A paternidade vem de Deus, e só de Deus pode vir, no nome e na essência. Se Deus tivesse permitido o completo esquecimento das tradições do paraíso, o gênero humano, com a instituição, teria perdido até mesmo o nome.

A família, divina em sua instituição, divina em sua essência, seguiu em toda parte as vicissitudes da civilização católica; e isso é tão certo que a pureza ou a corrupção da primeira é sempre sintoma infalível da pureza ou corrupção da segunda, assim como a história das vicissitudes e perturbações desta é a história das perturbações e vicissitudes por que passa aquela.

Nas idades católicas, a tendência da família é para o aperfeiçoamento: de natural, converte-se em espiritual, e do lar doméstico passa aos claustros. Enquanto os filhos se prostram reverentes no lar, aos pés do pai e da mãe, os habitantes dos claustros, filhos mais rendidos e reverentes ainda, banham com lágrimas os sacratíssimos pés de outro Pai melhor e o sacratíssimo manto de outra Mãe mais terna. Quando a civilização católica declina e entra em período de decadência, a família logo decai, vicia-se sua constituição, descompõem-se seus elementos e todos os seus vínculos se afrouxam. O pai e a mãe, entre os quais Deus não colocou outro medianeiro senão o amor, interpõem entre si o cerimonial severo; ao passo que uma familiaridade sacrílega suprime a distância que Deus pôs entre filhos e pais, lançando por terra o medianeiro da reverência. A família, então envilecida e profanada, dispersa-se e vai perder-se nos clubes e nos cassinos.

A história da família pode ser encerrada em poucos termos. A família divina, exemplar e modelo da humana, é eterna em todos os seus indivíduos. A família humana espiritual, que é a mais perfeita depois da divina, dura, em todos os seus membros, o tempo que dura o tempo; a família humana natural, entre pai e mãe, dura o que dura a vida, e entre pais e filhos, largos anos. A família humana anticatólica dura, entre pai e mãe, alguns anos; entre pai e filhos, alguns meses; a família artificial dos clubes dura um dia; a dos cassinos, um instante. A duração é, aqui como em muitas outras coisas, medida das perfeições. Entre a família divina e a humana dos claustros há a mesma proporção que entre a eternidade e o tempo; entre a espiritual dos claustros, a mais perfeita das humanas, e a sensual dos clubes, a mais imperfeita, há a mesma proporção que entre a brevidade de um minuto e a vastidão dos séculos.

Juan Donoso Cortés, Ensaio sobre Catolicismo, Liberalismo e socialismo, Livro I, Capítulo II

sábado, 28 de junho de 2025

Alguns problemas atuais à luz do Magistério de Pio XII

 


Por S.E.R. Alfredo Cardenal Ottaviani

DEVERES DO ESTADO CATÓLICO PARA COM A RELIGIÃO

Não é de admirar que os inimigos da Igreja tenham obstruído sua missão em todos os tempos, negando-lhe algumas – ou mesmo todas – de suas prerrogativas e poderes divinos. O ímpeto do assalto, com os seus pretextos falaciosos, já irrompeu contra o divino Fundador desta instituição bimilenária e, no entanto, sempre jovem: contra ele foi gritado, de facto – como agora se grita – «Nolumus hunc regnare super nos», «não queremos que este homem reine sobre nós» (Lc 19, 14).

Enquanto isso, com paciência e serenidade que brotam da certeza dos destinos que lhe foram profetizados e da certeza de sua missão divina, a Igreja canta ao longo dos séculos: "Non eripit mortalla qui regna dal caelesti", "Quem dá os celestiais não tira os reinos mortais". Mas, por outro lado, surge em nós a admiração, que cresce até ao espanto e se transforma em tristeza quando a tentativa de arrancar as armas espirituais da justiça e da verdade das mãos desta Mãe bondosa que é a Igreja é feita pelos seus próprios filhos; mesmo aqueles que, encontrando-se em Estados confessionais onde vivem em contato contínuo com irmãos dissidentes, devem sentir mais do que ninguém o dever de gratidão para com esta Mãe que sempre usou seus direitos de defender, guardar, salvaguardar seus fiéis.

IGREJA CARISMÁTICA E IGREJA JURÍDICA?

Hoje é admitido por alguns, na Igreja, apenas uma ordem "pneumática"; de onde eles passam a estabelecer como princípio que a natureza da lei eclesiástica está em contradição com a natureza da própria Igreja. De acordo com estes, o elemento sacramental original teria sido enfraquecido cada vez mais para dar lugar ao elemento jurisdicional; que agora constitui a força e o poder da Igreja. Assim, prevalece a ideia, como afirma o jurista protestante Sohm, de que ele é constituído como o Estado. No entanto, o cânon 108.3, que fala da existência na Igreja do poder de ordem e jurisdição, invoca o direito divino. E que esta invocação é legítima é demonstrado pelos textos evangélicos, pelas alegações dos Atos dos Apóstolos, pelas citações de suas epístolas, freqüentemente aduzidas pelos autores do Direito Eclesiástico Público para demonstrar a origem divina de tais poderes e direitos da Igreja. Na Encíclica Mystici corporis, o augusto Pontífice, felizmente reinante, expressou-o nos seguintes termos: "Lamentamos e condenamos o erro fatal daqueles que parecem ser uma Igreja ilusória, à maneira de uma sociedade alimentada e formada apenas pela caridade, à qual, não sem desdém, se opõem à outra que chamam jurídica. Mas enganar-se-iam ao introduzir tal distinção, pois não percebem que o divino Redentor, pela mesma razão que quis que a comunidade dos homens por Ele fundada fosse uma sociedade perfeita em seu gênero e dotada dos elementos jurídicos e sociais necessários para perpetuar na terra a obra salutar da Redenção, pela mesma razão também a quis enriquecida com os dons e graças do Espírito Santo. "A Igreja não quer ser um Estado, mas seu Divino Fundador a constituiu como uma sociedade perfeita com todos os poderes inerentes a tal condição jurídica, para cumprir sua missão em cada Estado sem conflito entre as duas sociedades, pois Ele é de diferentes maneiras o autor e o sustentáculo de ambas."

ADESÃO AO MAGISTÉRIO ORDINÁRIO

Aqui surge o problema da convivência entre a Igreja e o Estado laico. Há católicos que, dessa forma, estão difundindo ideias que não são totalmente adequadas. A muitos não se pode negar nem o amor à Igreja nem a recta intenção de encontrar um caminho de possível adaptação às circunstâncias dos tempos. Mas não é menos verdade que sua postura lembra a daquele "delicatus miles", daquele soldado efeminado que queria vencer sem lutar ou do ingênuo que aceita uma insidiosa "mão estendida" sem perceber que essa mão o arrastará pelo Rubicão em direção ao erro e à injustiça. O primeiro fracasso deles é não aceitar as "armas veritatis", as armas da verdade e os ensinamentos dos Romanos Pontífices neste último século – e em particular do Pontífice reinante Pio XII – orientaram os católicos a esse respeito com encíclicas, alocuções e todos os tipos de atos de magistério. 3

Estes, para se justificarem, afirmam que o conjunto dos ensinamentos da Igreja é uma parte permanente e outra parte obsoleta ou temporária, esta última refletindo as circunstâncias particulares dos tempos. Mas eles estendem este último até mesmo aos princípios estabelecidos nos documentos pontifícios, sobre os quais o ensinamento dos papas permanece constante, e que fazem parte do patrimônio da doutrina católica. Neste assunto, a teoria do pêndulo, introduzida por alguns escritores ao estimar o alcance das Encíclicas nas várias épocas, não é aplicável. "A Igreja", foi escrito, "acompanha a história do mundo à maneira de um pêndulo oscilante que, tendo o cuidado de manter a medida, mantém seu próprio movimento, invertendo-o de significado quando julga a amplitude máxima alcançada ... Toda uma história das Encíclicas poderia ser feita deste ponto de vista: assim, em matéria de Estudos Bíblicos: Divino Afflante Spiritu sucede Spiritus Paraclitus, Providentissimus. Em matéria de Teologia ou de Política: Summi Pontificatus, Non abbiamo bisogno, Ubi arcano Dei, sucede Immortale Dei" (cf. Temoignage chretien, 1 de Setembro de 1950).

Se o exposto acima fosse entendido como significando que os princípios gerais e fundamentais do direito público eclesiástico, solenemente afirmados na Encíclica Immortale Dei, se limitam a refletir momentos históricos do passado, enquanto mais tarde o pêndulo dos ensinamentos pontifícios nas Encíclicas de Pio XI e Pio XII teria passado, em seu "reverso", para posições diferentes, seria preciso julgá-lo totalmente errado; não só porque não corresponde, de facto, ao conteúdo das próprias Encíclicas, mas também porque é inadmissível na recta doutrina. O Pontífice reinante ensina-nos, de facto, in Humani generis, como devemos esclarecer nas Encíclicas o Magistério ordinário da Igreja: «Nem devemos crer que os ensinamentos contidos nas Encíclicas não exijam em si mesmos o assentimento, sob o pretexto de que nelas os Papas não exercem o poder do seu Magistério supremo. Pois eles ensinam isso pelo Magistério ordinário, sobre o qual também tem valor o seguinte: "Quem te ouve, ouve a mim"; e na maioria das vezes, quando é proposto e inculcado nas Encíclicas, já pertence por outras razões ao patrimônio da doutrina católica".

Por medo da acusação de que ele quer voltar à Idade Média, alguns de nossos escritores não se atrevem a sustentar que as posições doutrinais que são constantemente afirmadas nas Encíclicas pertencem à vida e ao direito da Igreja de todos os tempos. Para eles vale a admoestação de Leão XIII, que, ao recomendar concórdia e unidade no combate ao erro, acrescenta: "E nisso é necessário evitar que alguém seja conivente de alguma forma com falsas opiniões, ou resista a elas mais suavemente do que a verdade permite".

DEVERES DO ESTADO CATÓLICO

Tendo já tratado esta questão particular do dever de assentimento aos ensinamentos da Igreja, mesmo no seu Magistério ordinário, passemos a uma questão prática que, em termos vulgares, poderíamos chamar "quente", a saber: a questão de um Estado católico e as consequências que dele derivam em relação aos cultos não católicos. Sabe-se que, em alguns países de maioria absoluta de populações católicas, a Religião Católica é proclamada Religião do Estado nas respectivas Constituições. Citamos, a título de exemplo, o caso mais típico, a saber: o da Espanha. O artigo 6 do "Fuero de los Españoles", a carta fundamental dos direitos e deveres do cidadão espanhol, estabelece o seguinte: "A profissão e a prática da religião católica, que é a do Estado espanhol, gozam de proteção oficial". "Ninguém deve ser molestado por suas crenças religiosas ou no exercício privado de sua adoração." "Não serão permitidas outras cerimônias ou manifestações externas que não sejam as da religião católica." Isso levantou protestos de muitos não-católicos e incrédulos; mas, o que é mais desagradável, é considerado um anacronismo também por alguns católicos, pensando que a Igreja pode viver pacificamente e gozar da plena posse de seus direitos, no Estado laico, mesmo composto por católicos.

É conhecida a polêmica, recentemente desenvolvida em um país estrangeiro, entre dois autores de tendências opostas, na qual aquele que apoiou a tese acima mencionada afirma:
1. O Estado, propriamente falando, não pode realizar atos religiosos (uma vez que o Estado é um mero símbolo ou conjunto de instituições).
2. "Uma inerência imediata da ordem da verdade ética e teológica à do direito constitucional é, em princípio, dialeticamente inadmissível." Ou seja, a obrigação do Estado de adorar a Deus nunca poderia se tornar parte da esfera constitucional.
3. Finalmente, mesmo para um Estado composto por católicos não há obrigação de professar a religião católica; e quanto à obrigação de protegê-la, ela só é efetiva em certas circunstâncias, precisamente quando a liberdade da Igreja não pode ser garantida por outros meios. Por isso, muitos ataques ocorrem ao ensinamento exposto nos manuais de direito público eclesiástico, sem se deter no fato de que esses ensinamentos se baseiam, em sua maior parte, na doutrina exposta nos documentos pontifícios.

Agora então. Se há uma verdade certa e indiscutível entre os princípios gerais do direito público eclesiástico, é a do dever dos que estão no poder, em um Estado composto quase inteiramente por católicos e, conseqüentemente e coerentemente, governado por católicos, de informar a legislação no sentido católico. Isso implica três consequências imediatas:

1. A profissão social e não apenas privada da religião do povo.
2. A inspiração cristã da legislação.
3. A defesa do patrimônio religioso do povo contra qualquer assalto daqueles que lhe roubariam o tesouro de sua fé e paz religiosa.

Eu disse em primeiro lugar que o Estado tem o dever de professar: até socialmente sua religião. "Os homens não estão menos sujeitos ao poder de Deus unido na sociedade do que cada um por si mesmo; nem a Sociedade é menos obrigada do que os indivíduos a dar graças ao Criador Supremo, que a formou e combinou, que a preserva prodigamente e lhe concede beneficentemente uma inumerável cópia de bens. Desta forma, assim como não é lícito a nenhum indivíduo negligenciar seus deveres para com Deus e para com a Religião com a qual Deus quer ser honrado, da mesma forma "as Sociedades políticas não podem agir legalmente como se Deus não existisse, virar as costas para a Religião como se ela fosse estranha ou inútil para elas". "Pio XII reforça esses ensinamentos, condenando o erro contido naquelas concepções que não hesitam em separar a autoridade civil de qualquer dependência do Ser Supremo. (Causa Primeira e Senhor absoluto do homem, bem como da Sociedade); bem como de todo vínculo de lei transcendente derivado de Deus como de sua primeira fonte; concedendo-lhe poder de ação ilimitado, abandonando-o às ondas mutáveis de arbitrariedade ou apenas aos ditames de exigências históricas contingentes e interesses relativos". (Summi Pontificatus, A.C.E. p. 395. a: para. 22).

E, continuando, o augusto Pontífice mostra as consequências desastrosas que decorrem de tal erro, mesmo para a liberdade e os direitos do homem: "Negando assim a autoridade de Deus e o domínio de sua lei, o poder civil, como consequência inevitável, tende a se apropriar daquela autonomia absoluta que pertence apenas ao Supremo Criador e a tomar o lugar do Todo-Poderoso, elevando o Estado à coletividade como fim último da vida, ao critério supremo da ordem moral e jurídica" (Summi Pontificatus, A.C.E., p. 395. a: n.º 23).

Eu disse, em segundo lugar, que é dever dos governantes informar sua própria atividade social e legislação com os princípios morais da religião. É uma consequência do dever de religiosidade e submissão a Deus não apenas individualmente, mas também socialmente; e isso com uma vantagem certa para o bem-estar do povo. Contra o agnosticismo moral e religioso do Estado cristão em sua Carta Augusta de 19 de outubro de 1945 à XIX Semana Social dos Católicos Italianos, na qual o problema da nova Constituição deveria ser estudado. 
"Ao refletir sobre as consequências deletérias que uma Constituição que abandona a "pedra angular" da concepção cristã da vida, tentando se basear no agnosticismo moral e religioso, traria para a sociedade e seu curso histórico, todo católico compreenderá que naquele momento a questão que, de preferência a qualquer outra, deve atrair sua atenção e estimular sua atividade, consiste em assegurar às gerações presentes e futuras o benefício de uma lei fundamental do Estado que não se opõe a princípios religiosos e morais sãos, mas, pelo contrário, tira deles uma inspiração vigorosa, proclamando e perseguindo sabiamente os fins elevados para os quais estão ordenados" (Acta ap. Sed. Vol. 37. p. 274). «A este propósito, o Sumo Pontífice não deixou de louvar a sabedoria daqueles governantes que sempre favorecem ou souberam honrar, em benefício do povo, os valores da civilização cristã, mediante relações felizes entre a Igreja e o Estado, salvaguardando a santidade do matrimónio e a educação religiosa da juventude» (Radiomensagem do Natal de 1941, Cir. Ecclesia n. 25, 3 de janeiro de 1947).

Em terceiro lugar, eu disse que é dever dos governantes de um Estado católico impedir qualquer ruptura da unidade religiosa de um povo que se sente unanimemente na posse segura da verdade religiosa. Sobre este ponto, o Santo Padre afirma os princípios enunciados por seus predecessores, especialmente Leão XIII. Ao condenar o indiferentismo religioso do Estado, Leão XIII, enquanto na Encíclica "Immortale Dei" recorre ao direito divino, na Encíclica "Libertas" recorre também aos princípios da justiça e da razão. Em "Inmortale Dei", ele deixa claro que os governantes não podem "conceder indiferentemente uma carta de vizinhança aos vários cultos", porque, argumenta ele, eles são obrigados, no culto divino, a professar aquela lei e aquelas práticas com as quais o próprio Deus mostrou que quer ser honrado: "quo coli se Deus ipse demostravit velle" ("Inmortale Dei", loc. cit. supra). E na Encíclica "Libertas" ele inculca, apelando para a justiça e a razão: "A justiça, então, proíbe, e a razão proíbe também que o Estado seja ateu ou, o que acaba no ateísmo, que se comporte da mesma maneira em relação às várias religiões que eles chamam de conceder a todos indiferentemente os mesmos direitos" ("Libertas"). A.C.E. p. 197, 26).

O Papa invoca a justiça e a razão, porque não é justo atribuir direitos iguais ao bem e ao mal, à verdade e ao erro. E a razão rebela-se com o pensamento de que, por referência às exigências de uma pequena minoria, os direitos, a fé e a consciência de quase todo o povo são violados, e eles são traídos ao permitir que aqueles que apontam contra a sua fé introduzam uma divisão no seu seio, com todas as consequências da luta religiosa.

FIXIDEZ DE PRINCÍPIOS

Esses princípios são sólidos e imutáveis: eram válidos no tempo de Inocêncio III, de Bonifácio VIII; são válidas nos tempos de Leão XIII e Pio XII, que as confirmou em mais de um Documento. Por isso, com severa firmeza, ele chamou mais uma vez os governantes ao cumprimento dos seus deveres, invocando a admoestação do Espírito Santo, que não conhece limites de tempo: "Devemos pedir com insistência a Deus Pio XII na Encíclica Mystici corporis" que todos aqueles que governam os povos amem a sabedoria, para que esta sentença gravíssima do Espírito Santo nunca caia sobre eles: "O Altíssimo examinará suas obras e examinará seus pensamentos; pois vocês não governaram corretamente como ministros de seu reino, nem observaram a lei da justiça, nem andaram segundo o beneplácito de Deus. Terrível e rápido cairá sobre você, pois o julgamento mais severo será feito daqueles que estão nas alturas: pois o pequeno encontrará misericórdia, mas o poderoso será fortemente atormentado. Pois o Senhor de todos os aspectos não respeita nem teme o poder de ninguém, pois criou tanto os grandes como os pequenos, e cuida igualmente de todos" (Sap 6:3-7; apud. Pio XII, Encíclica "Mystici Corporis". Ed. Cit., p.p. 59-60).

Referindo-me, portanto, ao que disse acima sobre a concórdia das Encíclicas postas em causa, estou certo de que ninguém poderá demonstrar a menor oscilação, em matéria destes princípios, entre a "Summi Pontificatus" de Pio XII, as Encíclicas de Pio XI "Divini Redemptoris" contra o comunismo, "Mit brennender Sorge" contra o nazismo, "Non abbiamo bisogno" contra o monopólio estatal do secularismo, e as anteriores Encíclicas de Leão XIII "Immortale Dei". "Libertas" e "Sapientiæ Christianæ". "As últimas e mais profundas normas, que são a pedra angular da Fraternidade", proclama o augusto Pontífice na Radiomensagem de Natal de 1942, "não podem ser modificadas pela intervenção de qualquer engenhosidade humana; eles podem ser negados, ignorados, desprezados, transgredidos, mas nunca revogados com eficácia legal. (Cf. Ecclesia. Nº 79; 16 de janeiro de 1943).

OS DIREITOS DA VERDADE

Mas aqui é necessário resolver outra questão, ou melhor, uma dificuldade, tão ilusória que, à primeira vista, pareceria insolúvel. Objeta-se: você tem dois critérios ou normas de ação diferentes, como lhe convém: nos países católicos, você apóia a ideia do estado confessional, com o dever de proteção exclusiva da religião católica; vice-versa, onde você é uma minoria, você reivindica o direito à tolerância ou, francamente, à paridade de religiões. Portanto, você tem dois pesos e duas medidas: uma verdadeira duplicidade embaraçosa, da qual os católicos que levam em conta o atual desenvolvimento da civilização querem se livrar. Bem, são precisamente dois pesos e duas medidas que devem ser usados: um para a verdade, o outro para o erro. Os homens, que se sentem na posse segura da verdade e da justiça, não concordam com compromissos. Eles exigem pleno respeito por seus direitos. Por outro lado, como pode quem não se sente seguro na posse da verdade exigir o controle da situação sem compartilhá-lo com aqueles que proclamam o respeito por seus direitos com base em outros princípios?

O conceito de igualdade de religião ou tolerância é um produto do livre exame e da multiplicidade de confissões. É uma consequência lógica das opiniões daqueles que, em matéria de religião, sustentam que não há lugar para nenhum dogma e que a consciência de cada indivíduo é apenas o critério e a norma para a profissão de fé e o exercício do culto. Ora, nos países onde tais teorias estão em vigor, é de admirar que a Igreja Católica procure ter um lugar para o desenvolvimento de sua missão divina e procure reconhecer aqueles direitos que, como conseqüência lógica dos princípios adotados na legislação dos países, ela pode reivindicar? Ela gostaria de falar e reivindicar em nome de Deus: mas nesses povos não é reconhecida a exclusividade de sua missão. Contenta-se, então, em reclamar em nome dessa tolerância, dessa paridade e das garantias comuns em que se inspira a legislação dos países em questão.

Quando, em 1949, um Congresso de várias Igrejas heterodoxas se reuniu em Amsterdã para o avanço do movimento ecumênico, cerca de 146 Igrejas ou confissões diferentes estavam representadas. Os delegados presentes pertenciam a 50 nações: havia calvinistas, luteranos, coptas, católicos antigos, anabatistas, valdenses, metodistas, episcopais, presbiterianos, rito malabar, adventistas, etc. A Igreja Católica, que já se sente na posse segura da verdade e da unidade, não deve, logicamente, estar presente para procurar a unidade que os outros não têm. Pois bem, depois de tantas discussões, os reunidos não conseguiram chegar a acordo nem mesmo para uma celebração final comum do banquete eucarístico, que deveria ser o símbolo de sua união, se não na fé, pelo menos na caridade; a tal ponto que, na sessão plenária de 23 de agosto de 1949, o Dr. Kraemer, calvinista holandês e mais tarde diretor do novo Instituto Ecumênico de Celigny, na Suíça, observou que teria sido melhor omitir toda a ceia eucarística em vez de tanta divisão, fazendo muitos jantares separados.

Em tal estado de coisas, eu digo, poderia uma dessas confissões, se concorda com as outras ou mesmo predomina sobre elas em um Estado, assumir uma posição intransigente e exigir o que a Igreja Católica exige de uma grande maioria católica? Portanto, é maravilhoso que a Igreja pelo menos invoque os direitos do homem quando os direitos de Deus são ignorados! Foi o que fez nos primeiros séculos do cristianismo, diante do império e do mundo pagão; É assim que continua a acontecer hoje, especialmente onde todos os direitos religiosos são negados, como nos países submetidos à dominação soviética.

Como poderia o Pontífice reinante, diante da perseguição a que estão sujeitos todos os cristãos – e em primeiro lugar – os católicos, não apelar para os direitos humanos, para a tolerância, para a liberdade de consciência, quando também estes direitos se tornam um escárnio tão deplorável? 
Esses direitos humanos foram reivindicados pelo Papa em todas as áreas da vida individual e social em sua Mensagem de Natal de 1942 e, mais recentemente, na Mensagem de Natal de 1952, sobre os sofrimentos da "Igreja do silêncio". É claro, portanto, que se pretende irracionalmente fazer crer que o reconhecimento dos direitos de Deus e da Igreja, que se verificou no passado, é inconciliável com a civilização moderna, como se fosse um retrocesso aceitar o justo e o verdadeiro de todos os tempos. Um retorno à Idade Média é aludido, por exemplo, pelo seguinte texto de um conhecido autor: "A Igreja Católica insiste no princípio de que a verdade deve ter precedência sobre o erro, e que a verdadeira religião, quando é conhecida, deve ser ajudada em sua missão espiritual de preferência às religiões cuja mensagem é mais ou menos defeituosa. e em que o erro é misturado com a verdade. No entanto, seria muito falso concluir disso que esse princípio não tem outra aplicação possível senão reivindicando para a verdadeira religião os favores de um poder absolutista, ou a assistência de "dragões", ou reivindicando à Igreja Católica das sociedades modernas os privilégios de que gozava em uma civilização de tipo sagrado, como na Idade Média. Para cumprir seu dever, um governante católico de um estado não precisa ser um absolutista, ou um mero policial, ou um sacristão, ou voltar à civilização da Idade Média.

Outro autor objeta: "Quase todos aqueles que até agora tentaram refletir e examinar o problema do 'pluralismo religioso' foram confrontados com um axioma perigoso, a saber, que somente a verdade tem direitos, enquanto o erro não tem nenhum. De fato, todos concordamos hoje em reconhecer que esse axioma é falacioso, não porque queremos reconhecer direitos ao erro, mas simplesmente porque nos aproveitamos dessa verdade de Pero Grullo de que nem o erro nem a verdade – que nada mais são do que abstrações – são objetos de direito, ou são capazes de ter direitos, ou seja, para criar deveres executáveis de pessoa para pessoa".

Parece-me, por outro lado, que a verdade de Pero Grullo consiste antes nisto, a saber, que os direitos em questão têm um sujeito ótimo nos indivíduos que estão de posse da verdade, e que eles não podem ser exigidos igualmente pelos indivíduos sob o manto do erro. Ora, nas Encíclicas por nós citadas, parece que o primeiro sujeito de tais direitos é o próprio Deus; do que se segue que somente aqueles que obedecem aos seus mandamentos e estão em sua verdade e justiça estão na verdadeira lei. Em conclusão, a síntese da doutrina da Igreja sobre esta matéria foi, também nos nossos dias, mais claramente exposta na carta que a Sagrada Congregação para os Seminários e Universidades de Estudos enviou aos Bispos do Brasil a 7 de Março de 1950. Esta carta, que invoca continuamente os ensinamentos de Pio XII, adverte, entre outras coisas, contra os erros do ressurgente liberalismo católico, que "admite e encoraja a separação de poderes". Ele nega à Igreja qualquer poder direto em assuntos mistos, afirma que o Estado deve ser indiferente em assuntos religiosos e reconhece a mesma liberdade à verdade e ao erro. A Igreja não tem privilégios, favores ou direitos superiores aos reconhecidos por outras confissões religiosas em outros países católicos, e assim por diante".

CONTRASTE DE LEGISLAÇÕES

Tendo tratado a questão do ponto de vista doutrinal e jurídico, peço-lhe que me permita fazer um pequeno "excursus" de natureza prática. Quero falar sobre a diferença e a desproporção entre o clamor levantado contra os princípios enunciados, aplicados à Constituição espanhola, e o escasso ressentimento que, inversamente, todo o mundo secularista demonstrou pelo sistema legislativo soviético, opressor de todas as religiões. E, no entanto, as consequências desse sistema são testemunhadas pelos mártires que definham nos campos de concentração, nas estepes da Sibéria, nas prisões, para não mencionar a multidão daqueles que experimentaram com suas vidas e com todo o seu sangue, ao extremo, a iniquidade de tal sistema. O artigo 124 da Constituição stalinista, promulgada em 1936, e intimamente ligada às leis sobre associações religiosas de 1929 e 1932, diz o seguinte:
"A fim de garantir aos cidadãos a liberdade de consciência, a Igreja é separada do Estado e a escola da Igreja. A liberdade de religião, bem como a liberdade de realizar propaganda anti-religiosa, são reconhecidas para todos os cidadãos. Além da ofensa feita a Deus, a todas as religiões e à consciência dos crentes, a constituição que garante a plena liberdade de propaganda anti-religiosa – propaganda que é exercida da maneira mais licenciosa – é necessário especificar em que consiste a famosa liberdade de fé garantida pela lei bolchevique. As normas atuais que regulam o exercício do culto estão contidas na lei de 18 de maio de 1929, que dá a interpretação do artigo correspondente da Constituição de 1918, e cujo espírito informa o artigo 124 da atual Constituição.

Toda possibilidade de propaganda religiosa é negada e apenas a propaganda anti-religiosa é garantida. No que diz respeito ao culto, ele é autorizado apenas dentro dos templos: qualquer possibilidade de formação religiosa, seja por discursos, seja pela imprensa, por jornais, livros, panfletos, etc., é proibida; qualquer iniciativa social e caritativa é impedida, e os organizadores que aspiram a este ideal são privados de qualquer direito fundamental de se propagar para o bem dos outros. Como prova disso, basta ler o relato resumido desse estado de coisas feito por um russo soviético. Orleanskij, em seu panfleto sobre a "Lei sobre Associações Religiosas na República Socialista Federal Soviética Russa" (Moscou, 1930. p. 224). "A liberdade de profissão religiosa significa que a ação dos crentes na profissão de seus próprios dogmas religiosos é limitada ao mesmo ambiente dos crentes e é considerada como intimamente ligada ao culto religioso de uma ou outra religião tolerada em nosso Estado... Consequentemente, qualquer atividade propagandista e agitadora por parte de clérigos ou religiosos – e muito mais de missionários – não pode ser considerada como uma atividade permitida pela lei das associações religiosas, mas é considerada como indo além dos limites da liberdade religiosa protegida pela lei e se torna, portanto, objeto das leis criminais e civis assim que são contraídas". A luta contra a religião, além disso, é levada pelo Estado até mesmo no campo de todas as atividades que a prática do Evangelho traz consigo, tanto no que diz respeito à moralidade quanto no que diz respeito às relações sociais entre os homens.

Os soviéticos entenderam muito bem que a religião está intimamente ligada à vida de cada um, bem como ao coletivo; Por isso, para combater a religião, sufocam todas as suas atividades nos campos educacional, moral e social. A esse respeito, há o testemunho de um soviético: "O propagandista anti-religioso (diz o autor do artigo "Constituição stalinista e liberdade de consciência", em Sputnik Antireligioznika, Moscou, 1939, pp. 131-133) deve lembrar que a legislação soviética, embora reconheça a liberdade de todo cidadão de realizar atos de culto, limita a atividade das organizações religiosas, que eles não têm o direito de interferir na vida político-social da URSS e que não têm o direito de interferir na vida política e social da URSS, As associações podem tratar única e exclusivamente de assuntos relacionados ao exercício de seu culto, e nada mais. Os padres não podem publicar publicações obscurantistas, propagandear suas idéias reacionárias e anticientíficas em fábricas ou escritórios, no Kolchoz, no Sovchoz, em clubes, escolas, etc. De acordo com a lei de 8 de abril de 1929, as associações religiosas estão proibidas de fundar fundos de ajuda mútua, cooperativas, sociedades de produção e, em geral, de usar os bens à sua disposição para fins diferentes daqueles que se enquadram no âmbito das necessidades religiosas. Antes, portanto, de atirar a pedra contra os governantes católicos, que cumprem seu dever em relação à religião de seus cidadãos, os guardiões dos "direitos do homem" devem se preocupar com uma situação tão prejudicial à dignidade do homem, qualquer que seja a religião a que ele pertença, por parte de um poder tirânico. cujo peso pesa um terço da população mundial!

CULTOS TOLERADOS

A Igreja reconhece, no entanto, a necessidade que alguns governantes de países católicos podem encontrar para ter que conceder, por razões muito sérias, tolerância a outras religiões. "Verdadeiramente", ensina Leão XIII, "embora a Igreja julgue não lícito que os vários tipos e formas de culto divino gozem do mesmo direito que pertence à verdadeira religião, ela não condena por isso os responsáveis pelo governo dos Estados que, seja para obter um bem importante ou para evitar algum mal grave, tolerar na prática a existência de tais cultos no Estado". 9

Mas tolerância não significa liberdade de propaganda, fomentando a discórdia religiosa e perturbando a posse segura e unânime da verdade e da prática religiosa em países como Itália, Espanha e outros. Referindo-se às leis italianas sobre "cultos admitidos", Pio XI escreveu: "Cultos tolerados, permitidos, admitidos; Não seremos nós a fazer uma pergunta de palavras. A questão resolve-se, não sem elegância, distinguindo entre texto estatutário e texto puramente legislativo: no primeiro, em si mesmo mais teórico e doutrinal, a palavra "tolerado" parece caber melhor; no segundo, ordenado na prática, "permitido ou admitido" pode ser aceito, desde que seja lealmente entendido: isto é, desde que seja clara e lealmente entendido que a Religião Católica, e somente ela, de acordo com o Estatuto e os Tratados, é a Religião do Estado; com as consequências lógicas e jurídicas de tal situação de direito constitucional, especialmente em termos de propaganda... Não é admissível interpretar uma liberdade absoluta de discussão de modo a incluir nela aquelas formas de discussão que podem facilmente enganar a boa fé dos crentes não esclarecidos, e que facilmente se tornam formas disfarçadas de propaganda que não menos facilmente prejudicam a Religião do Estado, e por isso mesmo, ao próprio Estado, especialmente naquilo que é mais sagrado na tradição do povo italiano e em sua unidade mais essencial". (Carta de 30 de maio de 1929 ao Cardeal Gasparri sobre os Tratados de Latrão).

Mas os acólitos que gostariam de vir evangelizar os países de onde veio a luz do Evangelho e através dos quais a luz do Evangelho se difundiu, não se contentam com o que a lei lhes concede, mas desejam, contra a lei e sem se submeter às modalidades prescritas, ter plena licença para romper a unidade religiosa dos povos católicos. E lamentam que os governos fechem capelas abertas, em suma, sem a devida autorização, ou expulsem aqueles que se autodenominam "missionários", que entraram no país para outros fins que não os declarados para obter licenças. Também é significativo que nesta campanha eles contem entre seus mais fortes aliados e defensores os comunistas; que, embora na Rússia proíbam toda propaganda religiosa e, assim, a estabeleçam no artigo da Constituição que citamos, são, por outro lado, os mais colossais na apologia de todas as formas de propaganda protestante nos países católicos. E mesmo nos Estados Unidos da América, onde muitos irmãos discordam, são ignorados por certas circunstâncias de fato ou de direito relativas aos nossos países, hoje que imitam o zelo dos comunistas em protestar com clamor contínuo contra a chamada intolerância em detrimento dos missionários enviados para nos "evangelizar". Mas – por favor – por que razão se recusam as autoridades italianas a fazer no seu país o que as autoridades americanas fazem no seu país, quando aplicam, "in virga ferrea", leis destinadas a impedir a entrada no seu território ou mesmo a expulsar dele aqueles que são considerados perigosos em relação a certas ideologias e prejudiciais aos livros, tradições e instituições da pátria? Por outro lado, se os crentes que, além do Oceano, coletam fundos para seus missionários e para os neófitos conquistados por eles, sabiam que a maioria desses "convertidos" são autênticos comunistas, que não se importam pouco ou muito com a religião, exceto quando se trata de atacar o catolicismo, enquanto, por outro lado, se preocupam muito em fazer uso das doações que chegam copiosamente do exterior, Acho que eles pensariam duas vezes antes de enviar o que acabará por encorajar o comunismo.

NO TEMPLO E FORA DO TEMPLO

Uma última pergunta, que muitas vezes se renova. Trata-se da pretensão daqueles que gostariam de determinar, de acordo com seu próprio arbítrio ou suas próprias teorias, a esfera de ação e competência da Igreja, para poder acusá-la, quando ela ultrapassa essa esfera, de "intromissão na política". Tal é a reivindicação daqueles que gostariam de encerrar a Igreja dentro das quatro paredes do templo, separando a religião da vida, a Igreja do mundo.

Agora então. Mais do que as pretensões dos homens, a Igreja deve obedecer aos mandamentos divinos. "Prædicate Evagelium omni creaturas", "Pregai o Evangelho a toda criatura". E a Boa Nova refere-se a toda a Revelação, com todas as consequências que ela comporta para o comportamento moral do homem, considerado em si mesmo, na vida familiar, no que diz respeito ao bem da «polis». "Religião e moral", ensina o augusto Pontífice, "constituem em sua união íntima um todo indivisível; a ordem moral, os mandamentos da Lei de Deus, são igualmente válidos para todos os campos da atividade humana, sem exceção; mas, na medida em que se estendem, a missão da Igreja se estende a ela e, portanto, a palavra do sacerdote, seu ensinamento, suas admoestações, seus conselhos aos fiéis confiados aos seus cuidados. "A separação entre religião e vida, entre a Igreja e o mundo, é contrária à ideia cristã e católica".

Em particular, com firmeza apostólica, o Santo Padre continua: "O exercício do direito de voto é um ato de grave responsabilidade moral, pelo menos quando se trata de eleger aqueles que são chamados a dar ao país sua Constituição e suas leis, especialmente aquelas relativas, por exemplo, à santificação das festas, ao matrimônio, ao matrimônio, etc. a família, a escola, a regulação equitativa de múltiplas condições sociais. Portanto, é responsabilidade da Igreja explicar aos fiéis os deveres morais que derivam desse direito eleitoral". E isto, já não por ambição de vantagens terrenas, não para arrancar à autoridade civil um poder ao qual ela não deve nem pode aspirar – «Non eripit mortalia qui regna dai cælesti» – mas por causa do Reino de Cristo, para que a «Pax Christi in Regno Christi», a «Paz de Cristo no Reino de Cristo», se torne realidade; portanto, a Igreja não deixará de pregar, ensinar e lutar até a vitória. Para este fim, ela sofre, chora e derrama seu sangue. Mas o caminho do sacrifício é precisamente aquele pelo qual a Igreja geralmente chega aos seus triunfos.

Assim nos recordou Pio XII na sua Radiomensagem de Natal de 1941: «Hoje, filhos caríssimos, olhamos para o Homem-Deus, nascido numa gruta, para elevar de novo o homem àquela grandeza da qual tinha caído por culpa sua, e para o colocar de novo no trono da liberdade, da justiça e da honra que os séculos de falsos deuses lhe negaram. O castigo desse trono será o Calvário; seu adorno, não ouro e prata, mas o Sangue de Cristo, o Sangue divino que há vinte séculos é derramado sobre o mundo e mancha o rosto de sua Esposa, a Igreja; e que, purificando, consagrando, santificando e glorificando seus filhos, ele se torna a candura celestial. "Ó Roma cristã, esse Sangue é a sua vida!"

De filósofos e filosofias

 

Por D. Rubén Calderón Bouchet

Tornou-se moda entre nós dar o título de filósofo a qualquer professor de filosofia e, muitas vezes, a alguém que, sem sê-lo, sai ao encontro do público com algumas reflexões mais ou menos precisas sobre qualquer um desses problemas que afetam a convivência atual. Por se tratar de um termo grego e que, na época, tinha um significado muito preciso no processo daquela cultura, não é aconselhável usá-lo aos trancos e barrancos sem tomar todas as precauções possíveis, de modo que a designação é denotativa de uma atitude em relação à vida semelhante àquela que inspirou o termo na apreciação dos primeiros pensadores gregos.

Na minha opinião, a filosofia começa e termina na Grécia nos sistemas de Platão e Aristóteles e se prolonga, de forma um tanto agonizante, nas escolas de inspiração socrática que culminam em seu surgimento naquele ocaso da civilização grega que foi chamado de helenismo. Como esse processo intelectual tinha uma clara intenção teológica em seus primórdios, o cristianismo projetou, em seu movimento ascendente, as verdades que haviam sido reveladas por Deus e, assim, criou o corpo de sabedoria teológica que teve suas representações mais flagrantes nas figuras de Santo Agostinho, São Boaventura e São Tomás de Aquino, sem negligenciar outras de menor importância, mas de forma alguma insignificantes, que ajudaram a colocar a teologia no ponto culminando de nossa própria cultura.

O que chamamos de mundo moderno nasceu da ruptura do sistema religioso católico no século XVI e começou a aventura de uma redução da fé ao plano da vida doméstica. É o pai de família, diante de sua progênie, que se coloca como intérprete da Palavra Divina e mantém a atenção de sua família diante da sacralidade do livro sagrado. As outras atividades do espírito: ciência, arte, economia e política, na medida em que rompem o cerco disciplinar da sabedoria teológica, propõem-se a encontrar o absoluto em sua própria esfera e percorrem os privilégios de uma autonomia espiritual que as leva, pouco a pouco, a cair no circuito enclausurado da atividade econômica. tornar-se operações voltadas para o aumento da riqueza ou, pelo menos, para entrar na economia de mercado guiadas por critérios impostos pelo trabalho sobre a realidade circundante.

A religião doméstica é de curta duração e logo mostra sua incapacidade de sustentar a vida intelectual e moral dos homens nas alturas exigidas pelos frutos da atividade cultural. Os pensadores que cresceram no calor do fogo de sua casa, sonham em tirá-lo de casa e levá-lo ao fórum nos moldes de um sistema capaz de construir uma interpretação lógica das questões cruciais que afetam a vida do homem: Deus, a alma e o mundo. Como a vida doméstica é intrinsecamente dominada pelas exigências do trabalho cotidiano e este consegue dominar toda a vida do homem, esses pensadores constroem, cada um a seu modo, uma explicação do universo de sua linhagem construtiva e não contemplativa, como era a velha filosofia e era, em sua continuação, a teologia cristã. A poiesis substituiu a teoria, e a teoria emerge dentro desses sistemas individuais, mais como um poema do que como o resultado de um trabalho especulativo de um esforço conjunto dentro de uma escola.

Essa circunstância é criada nas obras dos pensadores modernos: Descartes, Kant, Hegel, etc. uma situação de fechamento que explode assim que seus autores falecem e seus epígonos devem enfrentar as dificuldades que não puderam ser resolvidas e que a natureza fechada do sistema necessariamente leva a desfinanciar. Isso também explica a proliferação daquelas designações que implicam as demandas de uma posteridade transformadora e que, se não fossem preservadas com um espírito progressista, apenas denunciariam a decomposição de um cadáver. Pós-moderno, mais moderno, ultramoderno são substitutos atenuantes para não enfrentar o desânimo da falência ideológica.

Os pequenos vermes que hoje proliferam no esqueleto de um prestigioso morto se autodenominam filósofos com o pretexto de esconder, com um termo venerável, sua condição miserável de carniçais condenados a arrotar o fedor daqueles restos insepultos.

Pessoalmente, não sinto nenhuma inclinação para admirar aquelas construções lógicas que para os poemas carecem de beleza e para a filosofia carecem de verdade. Sem dúvida, não são insignificantes e pode-se ver neles o trabalho sutil de uma inteligência que, a partir de algumas premissas aceitas como postulados, constrói um monumento de argumentos alinhados com precisão e às vezes não sem elegância, mas sempre longe do bom senso que inspirou o nascimento da filosofia.

Auguste Comte tentou apoiar o peso de sua nova ciência, a sociologia, na lei dos três estados que ele pensava ter descoberto em um rápido exame da evolução das ciências. Não é uma tarefa que exija uma reflexão muito longa para provar a completa falsidade dessa lei e, assim, demonstrar a inconsistência desse novo conhecimento que Comte ofereceu como uma sublime coroação do esforço sapiencial positivo. Na realidade, o que se chama ciência das sociedades, quando não se baseia numa análise histórica muito precisa e num claro fundamento antropológico, carece de qualquer fundamento e só pode levar-nos a uma série de confusões tanto mais lamentáveis quanto mais pretensiosas forem as conclusões práticas que dela se procuram tirar.

A sociabilidade é um acidente próprio do homem, surge do caráter essencialmente dialógico de sua razão e não pode ter outro fim senão aquele inscrito em sua natureza espiritual e ordenado por Deus à contemplação de sua essência. Para dispor livremente de suas faculdades espirituais, as sociedades históricas obedecem à sabedoria mais ou menos razoável que o homem imprime em suas ações. Sem dúvida, pode-se observar no discurso diacrônico da existência humana, modalidades que se repetem ao longo do tempo e são a expressão de demandas que surgem do dinamismo natural. Considerá-los independentemente do tempo e do lugar em que aparecem é uma reflexão que se inscreve, com razão, na antropologia filosófica ou na consideração dos princípios universais da ação prática.

La sociología como ciencia dependiente de la historia sólo tiene sentido en el marco de un sistema filosófico, como el de Comte o el de Marx, que conciben la sociedad como una realización acabada y perfecta de la evolución natural del hombre y en función de ese modelo teológico, son concebidas las sociedades históricas como aproximaciones y logros nunca bien terminados del paradigma esencial ubicado al fin de la historia. Si se observa en perspectiva teológica ese ideal es el Reino de Dios realizado por el sólo esfuerzo humano y esto explica también la pretensión de los sociólogos de hacer de su ciencia una suerte de saber donde culminan todos los otros esfuerzos científicos.

Os católicos tradicionais podem ser repreendidos por também terem um sistema interpretativo da realidade no qual a posição de todo conhecimento é organizada e cada conhecimento é localizado, em relação aos outros, em uma situação que está pronta e ordenada para a própria estrutura do sistema. Há alguma verdade nesta afirmação e muito que escapa à sua plena consideração. É verdade que a totalidade do conhecimento é ordenada de acordo com uma hierarquia sapiencial que vai do que sabemos sobre Deus ao que podemos saber sobre o átomo em uma escala que é ordenada de acordo com um grau de perfeição determinado pelo valor das entidades consideradas no estudo. Sem dúvida, isso não constitui um sistema clausível, fechado na perfeição de sua cadeia lógica. O que é determina a profundidade e a amplitude dos vários conhecimentos, mas em nenhum momento se pretende equiparar a realidade ao que é conhecido sem medir o abismo do que é ignorado. O que é, tanto na teologia como na mais humilde disciplina científica, supera o que é conhecido e incita, a partir da sua plenitude, a uma aproximação perpétua do entendimento sem medo de quebrar os esquemas do sistema interpretativo.

Esta é a diferença essencial entre a Escola Aristotélica Tomista e os sistemas ideológicos nascidos à luz do pensamento moderno. Foi isso que inspirou Gilson com aquela frase tão cheia de significado: os modernos pensam, nós tentamos saber. Se a ordem do universo deve nascer totalmente armada da inteligência do homem, o ponto de partida obrigatório para montar o quebra-cabeça é, sem dúvida, a imanência. Quer eu o tome como Descartes da simples enunciação do cogito, quer me detenha para examinar o próprio ato de saber, como acontece em Kant, quer tome como base a dialética oposição sujeito e objeto, a imanência mede o curso de um conhecimento que se desenvolve como silogismo, apoiado nas premissas que se supõem indiscutíveis para o exercício da razão.

Quando dizemos que o ponto de partida normal do conhecimento é a res sensible, estamos diante de um dado que confronta a razão com toda a densidade de seu mistério óptico. A análise pode descobrir os componentes do ser físico, mas nunca consegue chegar ao ponto em que a realidade emerge dos abismos do ser e assume aquela plenitude entitativa que provoca o espanto de nossa inteligência e nos impele a penetrar com sondas lentas e sempre inexaustivas em relação à realidade inesgotável.

Disseram-me que Descartes não era protestante e, em apoio a essa afirmação, eles empunham uma promessa que ele teria feito à Virgem para sair de sua aventura especulativa com segurança. Tudo isso pode ser muito verdadeiro ou não tão verdadeiro quanto parece, mas há um fato certo, sua ligação com os Rosacruzes e esse sonho com todas as características de uma iniciação gnóstica que precede a proposição de suas meditações metafísicas. Lá, a existência de Deus é deduzida de sua enunciação essencial e, embora isso pareça ter sido uma tentação de Santo Anselmo, sua refutação posterior dentro da escolástica teve que ser conhecida por todo filósofo católico antes de embarcar em uma aventura com antecedentes negativos.

Da ordem do conhecimento para a ordem do ser, não se pode tirar uma conclusão legítima, porque a lógica não é ontologia. Temos que esperar o advento de Hegel para encontrar uma confusão dessa natureza levada ao seu mais alto nível especulativo, mas isso já é protestante no sentido mais completo e completo do termo, porém não podemos isentar Descartes de ter sido o primeiro a iniciar esse tipo de reflexão com a qual começa a chamada modernidade. O próprio Hegel reconhece isso em sua História da Filosofia quando denuncia a descoberta antroponímica de Descartes como a primeira a apontar para a Terra como o centro do universo.

Dir-se-á que esta descoberta não coincide com a revolução copernicana, mas não podemos esquecer que os sistemas cosmológicos da época, hélio cenúrico ou não, dependiam em sua construção de nossa inteligência matemática e essa convergência intelectual deu ao homem uma posição central no mundo, que era precisamente o que Hegel queria apontar.

O destino do homem neste mundo é determinado, em grande parte, por suas preferências axiológicas. Com isso não quero dizer nada de estranho, mas apontar, em termos um tanto pedantes, que onde colocamos nosso coração, também encontramos a razão de nossa existência. A ciência, a arte, a política ou a economia são geralmente os pólos de nossas predileções, a menos que nós mesmos estejamos no gozo de nossa plenitude vital, mas como esta não costuma durar muito, logo colhemos os frutos amargos do desencanto que aparecem com os primeiros sintomas de nossa decadência fisiológica.

Esses pólos de valores não podem se tornar instâncias absolutas sem provocar um desequilíbrio na economia de nosso equilíbrio espiritual que inevitavelmente leva à loucura, se não surgir em nós uma força que os equilibre e os ajuste às demandas de uma harmonia existencial que coloque a paz no sistema de valores. Essa é a força que a religião dá, ou, na falta disso, um controle sobre a impulsividade que permite que os impulsos preferenciais parem nos limites onde começam a atacar as outras atividades do espírito.

Falamos de um homem deformado por uma preferência avaliativa quando os critérios de sua condição de cientista, economista, político ou artista penetram no contexto de todas as outras atividades e lhe impõem suas próprias normas espirituais em detrimento daquelas que lhe são específicas. Comte acreditava na possibilidade de impor critérios científicos à política, à economia e às artes, sem descartar a religião que sonhava com isso, emergindo, totalmente armada, da sociologia positiva. Marx pensava que a economia era a atividade que impunha seus critérios a todas as outras atividades da mente e, claro, seguindo com todo o rigor as premissas dessa preferência axiológica, transformou a economia em uma espécie de religião capaz de mudar o destino do homem por meio de uma mudança na posse dos meios de produção. Seu sonho não só se chocou com a natureza de outros saberes, mas também com a própria economia ao despojá-la de sua fonte mais íntima, que é o interesse individual, pois enquanto nenhum outro for inventado, é o único que cada um de nós conhece e aquele que move nossos pés e mãos para alcançar as satisfações que lhe são próprias.

Diz-se também que a religião pode, em alguns casos, penetrar distorcidamente no conteúdo das outras atividades do espírito e desviá-las de seus objetivos, provocando nelas alterações muitas vezes monstruosas. Duvido que isso possa acontecer na medida em que a religião é realmente a obra de Deus. Felix Konevzny fala da religião hebraica como se ela tivesse inspirado uma civilização que ele chama de sacral, para indicar essa substituição de todo conhecimento específico pelo único conhecimento de tipo religioso. De fato, a única ciência cultivada pelos hebreus era a que estava contida na Sagrada Escritura. Não havia outra arte senão aquela inspirada na vida religiosa. A política era a indicada por Yahweh aos seus profetas e a economia era inteiramente baseada em descrições religiosas. No entanto, nenhuma dessas atividades sofreu em seu próprio conteúdo uma distorção imposta por critérios oriundos da religião. Quero dizer que a ciência, embora exclusiva, era um conhecimento completo que não negava a possibilidade de outros conhecimentos. A economia em seu sentido estrito respondia às necessidades do povo e, embora regulada por cânones religiosos, não se afastava da estrutura delineada pelas demandas do bem viver. Os hebreus não se destacaram nas atividades artísticas plásticas, mas seus hinos religiosos, seus salmos e todos os seus escritos proféticos têm a profundidade e o sabor das obras alimentadas por uma inspiração espiritual de inegável altura religiosa. Sua política tinha um objetivo fundamental, sustentar a comunidade israelita na expectativa do grande evento religioso que estava por vir e encher Israel com os dons da promessa feita por Javé. Era, como diz Konevzny, uma civilização sagrada, mas embora todas as suas atividades espirituais fossem intrinsecamente elevadas pela contemplação religiosa, elas não sofriam um prejuízo em suas respectivas naturezas, mas uma ordenação para um destino superior designado e desejado por Deus.

O caso do Islã, que pode se assemelhar à antiga civilização israelita, é diferente. É fácil ver na disposição do Alcorão uma intenção política que direciona a própria fé para um propósito humano: a conquista do mundo pelos crentes e para a maior glória do Islã concebido como um corpo político militar que a fé em Alá alimenta com seu fogo apaixonado. Não esqueçamos que o que o Islã concebe como um reino escatológico é o prolongamento da vida carnal com seus prazeres sensíveis, mas de acordo com as possibilidades de um corpo invulnerável.

É um aforismo da sabedoria popular sustentar que o peixe pela boca morre, o que significa que o que constitui a principal virtude de um homem, sua energia excepcional é o que causa sua queda. Os inteligentes perdem a inteligência e os obstinados seu desejo de dominar. Algo semelhante acontece com as civilizações. Os gregos concluíram sua jornada terrena no fogo-fátuo do alexandrinismo, os romanos no colapso de suas fronteiras se estenderam além de suas possibilidades militares e os judeus perderam o nacionalismo, a ideia de terem sido escolhidos por Deus como um povo favorito e a decepção que Cristo lhes causou quando os colocou. juntamente com os outros povos, em pé de igualdade que ofendeu seu orgulho de nação eleita. O Islã morre quando a guerra santa deixa de sustentá-lo com seu feitiço e seu guerreiro enferruja na saciedade dos bens adquiridos. A Espanha era seu túmulo suntuoso e onde começou o refluxo de sua maré agressiva.

O cristianismo teve que morrer quando perdeu de vista o horizonte sobrenatural de seu destino, e a ideia do Reino de Deus tornou-se uma utopia socialista ou democrática, quando o demagogo substituiu o santo e o agente eleitoral o cavalheiro cristão.


Autoridade e liberdade



Por D. Rubén Calderón Bouchet

O homem normal e espontaneamente tende a ser realista e a acreditar que o mundo ao seu redor existe, independentemente de ele pensar ou não. É uma evidência imediata que lhe é imposta sem crítica prévia e que pode ser adjetiva ingênua ou natural, como você quiser, mas quando a experiência de fundar uma explicação da realidade a partir da imanência foi feita ad nauseam, um retorno a um contato saudável com os primeiros princípios é uma indicação clara de saúde mental. A linguagem humana nasce dessa experiência acrítica e preserva em seus signos verbais a tendência espontânea a um realismo imediato que explica e justifica nosso encontro com as coisas. Recuperar a intenção primordial da linguagem é uma tarefa de purificação filosófica à qual a escola aristotélica se dedicou especialmente.

Acontece que, no curso da história, o homem pode trocar um sistema de valores por outro e inverter a ordem das prelazias axiológicas, colocando em primeiro lugar aquilo que, por sua natureza, ocupa o último lugar em uma escala hierárquica saudável. Em nosso tempo, estamos testemunhando, entre atônitos e perplexos, uma instalação plena de valores econômicos que traz, como consequência imediata, uma corrupção da ciência, da política, da arte e até da religião e da própria economia que, quando hipertrofiada, torna-se uma espécie de falsa religião, como acontece no marxismo ou naquele capitalismo selvagem que busca substituí-lo.

A mudança nas preferências avaliativas provoca uma conseqüente mudança nos critérios com os quais as outras disciplinas da mente devem enfrentar e, é claro, a linguagem sofre a influência dessa corrupção "in radice" da ordem axiológica. As palavras modificam seus significados e muitas vezes passam a significar o oposto do que significavam anteriormente. Assim, o termo prudência, que é sinônimo de sabedoria prática, torna-se um substituto para a cautela que os escolásticos apontavam com a locução de "prudentia carnis" que é, precisamente, o vício oposto à virtude moral por excelência.

A palavra autoridade tornou-se sinônimo de poder e é usada de forma intercambiável para indicar o governo ou a natureza abusiva de um poder exercido fora dos limites de sua jurisdição. Falamos de um governo autoritário ou autoritarismo como se tais palavras fossem semelhantes à autocracia ou ao despotismo, despojando-as de seu conteúdo semântico tradicional que sempre implicava o exercício de um conhecimento flagrante.

Em bom espanhol, pode-se falar do poder de um barco, de uma bomba, de um terremoto, mas não de sua autoridade. Por que? Pois esta palavra sempre implica inteligência, conhecimento, e uma vez que inteligência e conhecimento dependem de nossa participação com inteligência e conhecimento divinos, a autoridade tem Deus como a principal fonte análoga e absoluta de seu exercício responsável.

Se isso é teologia demais para a anemia metafísica de que sofremos hoje, limitar-me-ei a dizer que o termo autoridade é aplicado corretamente quando se refere ao conhecimento que deve ser possuído por aqueles que exercem qualquer prelazia na ordem social em que devem agir. Por isso, não se pode falar de abuso de autoridade quando acontece exatamente o contrário: há um abuso de poder por falta de autoridade.

A razão humana é dialógica e pressupõe para sua perfeição e crescimento que estejamos sujeitos, desde a infância, à autoridade daqueles que conhecem e possuem o conhecimento das coisas que devemos aprender. Nessa relação vital de aprendizagem, há dois momentos que devem ser distinguidos com alguma precisão: um compulsivo e outro presuntivo de conhecimento. Um dócil natural às instâncias educativas pode reduzir o momento da compulsão a um manejo suave de estímulos morais: recompensas ou ameaças, mas os mais turbulentos e rebeldes exigem necessariamente um aumento da dose persuasiva que pode atingir a severidade da punição.

O ato de aprender algo é um ato livre, não é determinado por nenhuma lei física: posso ou não entender que a medida dos ângulos internos de um triângulo é equivalente a dois ângulos retos. Quando minha inteligência se abre para a verdade do teorema, esse conhecimento se torna parte do meu conhecimento. Ninguém pode me fazer entender por golpes, mas enquanto eu tiver que lutar contra a preguiça ou uma má disposição mental, o elemento compulsivo pode desempenhar um papel positivo e me ajudar a superar minhas más inclinações.

Como a distribuição do conhecimento e as medidas coercitivas a serem tomadas para torná-lo efetivo geralmente são da mesma pessoa, o exercício de ambas as funções é atribuído à autoridade sem especificar que em ambas, a inteligência pode agir com maior ou menor sabedoria, ou seja, com maior ou menor autoridade no sentido exato do termo. Em outras palavras, posso ensinar de forma inteligente e aplicar um sistema compulsivo estúpido, pelo qual minha autoridade intelectual não corresponde à minha autoridade educacional. À medida que as pessoas entendem o termo de trás para frente, elas chamarão o comportamento compulsivo errôneo de autoritário e a persuasão inteligente do bom professor de não autoritária.

CALDERÓN BOUCHET, Rubén: Autoridade e liberdade. In: Revista Cabildo, Nº 36, Buenos Aires, maio de 2004, pp. 24-25.



domingo, 22 de junho de 2025

O monge domador de animais


Muitos moços estariam prontos a matar o dragão nos bosques, como Siegfrield; mas, quanto se trata do dragão das suas más inclinações, não têm a paciência de lhe dar combate. Preferem renunciar a esse santo trabalho.

Uma noite, o abade de um mosteiro perguntou a um dos seus monges: “Que tens hoje?” – “Eu, respondeu o monge, como todos os outros dias, estive tão ocupado que minhas fracas forças nunca teriam bastado para isso, se não fosse o auxílio da graça divina. Todos os dias tenho de vigiar dois falcões, conter dois cervos, forçar dois gaviões a fazerem minha vontade, vencer um verme, domar um urso e tratar de um doente!”

- “Que é que estás contando?, interrogou o abade rindo. Tais trabalhos não se fazem no nosso mosteiro!” – “Assim é contudo, replicou o monge. Os dois falcões são meus olhos, que devo vigiar continuamente para que não se detenham em objeto proibido. Os dois veados são meus pés, cujo andar devo regrar, se não quiser que me conduzam pela senda do mal. Os dois gaviões são minhas mãos, que me cumpre forçar a trabalhar e a fazer o bem. O verme é minha língua, que precisa ser refreada cem vezes no dia para não ter conversas vãs e superficiais. O urso é o meu coração, cujo egoísmo e vaidade tenho que domar. E o doente é meu corpo, de que me cumpre tomar cuidado incessante, para que a sensualidade não se aposse dele.”

E aquele monge tinha bem razão. A luta contra os teus instintos desordenados assemelha-se ao trabalho do domador; e todos os que querem progredir o seu caráter devem entregar-se diariamente a esse trabalho... tu também, meu filho.

O jovem, que tem cuidado de se tornar homem de caráter, jamais desculpará os seus defeitos, dizendo: “Não há remédio, nasci assim, é a minha natureza”; porém trabalhará sem descanso em aperfeiçoar a sua alma... Repete, pois, a miúdo: se minha alma está cheia de animais selvagens, domá-los-ei! Não ficarei como nasci, virei a ser aquilo que quero ser!

Dom Tihamer Toth

O Moço de Caráter



Ciência e ignorância


Porque tu és grande, Senhor, e pondes os olhos nas coisas humildes, e as elevadas as conheces de longe, e não te aproximas senão dos contritos de coração. Nem és encontrado pelos soberbos, ainda que sua curiosa perícia seja capaz de contar as estrelas do céu e as areias do mar; seja capaz de medir as regiões do céu e de investigar o curso dos astros.

Com a inteligência e o engenho que lhes deste investigam os segredos do mundo, e descobriram muitos deles; predisseram com muitos anos de antecedência os eclipses do sol e da lua, no dia e hora em que hão de suceder, sem que nunca lhes falhasse o cálculo, acontecendo sempre tal e como haviam anunciado. Deixaram ainda por escrito as leis por eles descobertas, as quais ainda hoje se lêem, e de acordo com elas se prediz em que ano, e em que mês do ano, e em que dia do mês, e em que hora do dia, e em que parte de sua luz se hão de eclipsar o sol e a lua; e tudo acontece como está predito.

Admiram-se disto os ignorantes, e pasmam. Os sábios gloriam-se disso, e se desvanecem, e com ímpia soberba afastam-se e se eclipsam de tua luz. E, prevendo com exatidão o eclipse vindouro do sol, não vêem o seu, que já está presente. Não procuram religiosamente saber de onde lhes vem o talento com que investigam essas coisas e, achando que tu as criaste, não se entregam a ti, para que conserves o que lhes deste, nem se te oferecem em sacrifício, como se tivessem feito a si mesmos; nem dão morte às suas soberbas, que alçam vôo como aves do céu; nem às suas insaciáveis curiosidades que, como peixes do mar, passeiam pelas secretas sendas do abismo; nem às suas luxúrias, que os igualam aos animais do campo, a fim de que tu, ó Deus, fogo devorador, destruas estas suas preocupações de morte, e os torne a criar para uma vida imortal.

Mas não conheceram o caminho, o teu Verbo, por quem fizeste as coisas que numeram, e a eles próprios que as numeram, e os sentidos com que percebem as coisas que numeram, e a mente graças à qual as numeram. Tua sabedoria escapa aos números. Teu Filho Unigênito se fez para nós sabedoria, justiça e santificação, e foi contado entre nós, e pagou tributo a César. Não conheceram este caminho, por onde desceriam de seu orgulho até ele, e por ele subiriam até ele; não conheceram, digo, este caminho, e se julgaram mais elevados e resplandecentes que estrelas, e assim vieram a rolar por terra, e seu coração insensato se obscureceu.

Dizem muitas coisas verdadeiras acerca das criaturas; mas, como não procuram piedosamente a Verdade, isto é, o autor da Criação, não o encontram; e, se o encontram reconhecendo-o por Deus, não o honram como a Deus, nem lhe dão graças. Antes, se desvanecem em seus pensamentos, e se dizem sábios, atribuindo a si próprios o que é teu. Atribuem a ti, com perversa cegueira, suas mentiras, a ti, que és a própria Verdade; alteram a glória de um Deus incorruptível, concebendo-a à semelhança e imagem do homem corruptível, das aves, dos quadrúpedes, das serpentes. E convertem tua verdade em mentira, e adoram e servem antes à criatura do que ao Criador.

Eu porém guardava muitas de suas opiniões verdadeiras acerca das criaturas, cuja explicação encontrava nos números, na ordem dos tempos e no testemunho visível dos astros; comparava-as com os ensinamentos de Manés, que escreveu sobre essas matérias numerosas e delirantes loucuras, sem achar nenhuma explicação para os solstícios e equinócios, os eclipses do sol e da lua, e para outras coisas, enfim, das quais tomara conhecimento pelos livros da sabedoria profana.

Contudo, exigia-me que acreditasse nessas doutrinas, embora não concordassem absolutamente com meus cálculos e com o que meus olhos testemunhavam. 

Senhor, Deus da verdade, acaso te agradará quem conhecer essas coisas? Infeliz do homem que, conhecendo-a todas, te ignora ti; mas feliz de quem te conhece, embora as ignore! Quanto ao que conhece a ti e a elas, este não é mais bem-aventurado por causa de seu saber, mas só é feliz por ti, se, conhecendo-te, te glorifica como Deus, e te dá graças, e não se desvanece em seus pensamentos.

É melhor aquele que reconhece estar na posse de uma árvore e te dá graças por sua utilidade, embora ignore quantos côvados tem de altura e de largura, que o que a mede, e conta todos os seus ramos, mas não a possui, nem conhece, nem ama a seu Criador. Assim o homem fiel, a quem pertencem todas as riquezas do mundo, e que, nada possuindo, possui tudo, por estar unido a ti, a quem servem todas as coisas – embora desconheça até o curso das estrelas da Ursa – e seria insensatez duvidar – é certamente melhor do que o que mede os céus, conta as estrelas e pesa os elementos, mas despreza a ti, que dispuseste todas as coisas em número, peso e medida.

Santo Agostinho - Confissões

A verdadeira e autêntica teologia

  A verdadeira teologia, como ciência que é da fé e dos costumes cristãos, está submersa nas virtudes teologais da fé e da caridade. Respira...